Índice
Introdução
O gênero discursivo contribui para se categorizar, mas também para explicar.
Em uma dada sociedade, há inúmeras maneiras de se referir a tipos de textos, de classificá-los a partir de alguma característica específica: “e-mail”, “newsletter”, “notícia”, “conversa”, “manual”, todos termos utilizados no cotidiano para envolver um texto em uma classificação que, por sua vez, representaria a regularidade encontrada entre os textos concretos classificados[1]. Essas categorias, por sua vez, tendem a ser estabelecidas a partir de critérios heterogêneos, “‘romance sentimental’ remete a um tipo de conteúdo (sentimental); ‘narrativa’, a um modo de organização textual; ‘jornal’, ao caráter periódico da publicação”[2].
A heterogeneidade dos critérios para o estabelecimento destes tipos se refere propriamente à heterogeneidade das posições sociais ocupadas pelos sujeitos que, em seu gesto de leitura, em sua vida prática, classificam e organizam os objetos do conhecimento de diferentes maneiras:
Essas categorias variam em função do uso que delas se faz: as categorias de que dispõe um leitor que procura um livro em uma livraria não são as dos livreiros, a dos críticos literários dos jornais, nem as dos teóricos da literatura.
O que gera uma possibilidade virtualmente infinita de gêneros, na medida em que “se há gênero a partir do momento que vários textos se submetem a um conjunto de coerções comuns e que os gêneros variam segundo os lugares e as épocas, compreender-se-á facilmente que a lista dos gêneros seja, por definição, indeterminada”[3]. Desta forma, cabe justamente ao analista do discurso determinar quais categorias genéricas que serão utilizadas, ou seja, quais os tipos de coerções textuais que serão observadas para compor um quadro de gênero relevante para a análise em que for utilizado. Ao mesmo tempo, há algo fora do texto que se faz relevante, pois “não se pode refletir sobre a questão dos gêneros [ou a generacidade] de maneira a-histórica, sem levar em conta os mundos dos quais participam as práticas verbais”[4].
O objetivo deste artigo é entender as formas de coerções textuais e situacionais (a cena discursiva) que compõem o conceito de gênero discursivo em Dominique Maingueneau a partir das elaborações contidas em Novas tendências em análise do discurso, Análise de textos de comunicação e Gêneros do discurso e web: existem os gêneros web?.
Como conceber o gênero
Apesar da vastidão de tipos de textos que podem ser encontrados no conjunto de enunciados que circulam em uma dada sociedade, à análise do discurso interessam coerções específicas que qualificam um texto ao seu gênero. A constituição de um gênero deve expor suas regularidades constitutivas, ou seja, os traços que são regulares na produção de enunciados e que não necessariamente são planejados conscientemente enquanto parte de um gênero: sua regularidade é constitutiva, sendo assim, entende-se que o gênero estudado, se de fato existe, deve se fazer real na própria prática “natural”, “automática”, dos locutores. Pois “o gênero designa uma atividade comunicacional socialmente identificável, digitado na globalidade, quer dizer, um gênero de discurso; é sobre essa concepção que nos apoiamos”[5].
Esta concepção, por sua vez, entende a existência de tipos de discurso. Estes são
associados a vastos setores de atividade social. Assim, o “talk show” constitui um gênero de discurso no interior do tipo de discurso “televisivo” que, por sua vez, faz parte de um conjunto mais vasto, o tipo de discurso “midiático” em que figurariam também o tipo de discurso radiofônico e o da imprensa escrita.[6]
Até o momento, entende-se que o gênero é pensado a partir de constrições internas à enunciação e, ao mesmo tempo, a partir dos resultados regulares que essas constrições geram. Trata-se de uma delimitação pensada no nível do discurso. Já os tipos de discurso são estabelecidos através da divisão da sociedade em setores (saúde, ensino, educação, etc) baseada em grades sociológicas de entendimento da realidade.
A categoria do gênero do discurso é fundada sobre critérios de ordem situacional, uma vez que se trata de dispositivos de comunicação sócio-históricos definidos. Um gênero de discurso prescreve papéis para os participantes, uma finalidade, um midium, uma organização textual etc.[7]
A 1) organização textual é um elemento, ainda há 2) uma finalidade, 3) papéis, 4) um midium. É possível relacionar cada um dos elementos acima a partir de duas ordens de condições para a realização do discurso[8]:
- Ordem comunicacional: “A cada gênero associam-se momentos e lugares de enunciação específicos e um ritual apropriado. O gênero, como toda instituição, constrói o tempo-espaço de sua legitimação. Estas não são ‘circunstâncias’ exteriores, mas os pressupostos que o tornam possível”. O ritual apropriado, com o meio de transmissão adequado que, por sua vez, é preenchido por um texto adequado. Aqui, identificamos o primeiro e quarto ponto da citação acima.
- Ordem estatutária: “Que estatuto o enunciador genérico deve assumir e qual estatuto deve conferir a seu co-enunciador para tornar-se sujeito de seu discurso? O gênero funciona como o terceiro elemento que garante a cada um a legitimidade do lugar que ocupa no processo enunciativo, o reconhecimento do conjunto das condições de exercício implicitamente relacionados a um gênero”. Aqui, pode-se apontar uma aproximação com a noção de formação imaginária de Michel Pêcheux, pois mantém a preocupação com a situação e com a legitimidade de uma relação concreta presente nela. Os papéis (o terceiro ponto da citação acima) são distribuídos e, ao mesmo tempo, sua distribuição prévia permite a organização dos indivíduos. Os lugares de enunciação, desta forma, pressupõem a capacidade de indiferentes indivíduos o ocuparem e o exercerem, na medida em que o próprio discurso pressupõe a existência de lugares de enunciação afetados por diferentes capacidades necessárias para seu desempenho.
Sendo a noção de gênero fincada num funcionamento coercitivo e constitutivo, ou seja, coercitivo posto que, para falar enquanto médico, é necessário ter um diploma médico e, dado que se fala enquanto médico, se espera determinados enunciados e não outros (por exemplo, numa consulta médica, espera-se que o médico indique um remédio responsável pela cura ou alívio da doença, não uma sinopse de um filme); constitutivo na medida em que o gênero explicita condições ritualísticas, capacidades necessárias ao desempenho da prática verbal e uma organização adequada (hierarquias, autoridade, interdições, etc) que não está marcada somente no texto produzido, mas também nos indiferentes indivíduos que produzem o texto.
A existência prática dos gêneros do discurso garante duas utilidades[9]:
- Economia cognitiva: “Graças ao nosso conhecimento dos gêneros do discurso, não precisamos prestar uma atenção constante a todos os detalhes de todos os enunciados que ocorrem à nossa volta”. É possível perceber em um instante que tal enunciado é de um folheto político ou de uma propaganda de curso de inglês, sendo assim, a quantidade de elementos a serem levados em consideração para uma possível decisão diminui significativamente.
- Assegurar a comunicação: “Sendo partilhada pelos membros de uma coletividade, a competência genérica permite também evitar a violência, o mal-entendido, a angústia de um ou outro dos participantes da troca verbal, enfim, permite assegurar a comunicação verbal”. Ou seja, ao enviar um e-mail a um amigo, a ausência de uma assinatura formal no e-mail enviado ou até mesmo a informalidade da comunicação serão pressupostamente entendidas, visto que ambos pressupõem a participação do outro no gênero (do enunciador e do co-enunciador).
Desta forma, apesar das condições de enunciação pertencentes a um gênero poderem não ser conhecidas por completo por um indivíduo, a imersão no gênero introduz o indivíduo em regras não necessariamente explicitas ou passíveis de explicitação – nos termos da análise do discurso – pelos indivíduos participantes, mas sempre compartilhadas e de alguma forma significadas num nível de consciência que permite compreender que cada ato tomado numa comunicação pressupõe alguma consciência sobre o gênero (caso esta consciência não exista, então a comunicação tenderá a falhar por não atender os pontos explicitados acima).
Eficiência prática
Há três categorias de tipos de gêneros de discurso (não de tipos discursivos, como exposto acima), conforme explicado por Maingueneau, que sintetizam os diferentes tipos de práticas verbais:
- Gêneros autorais: “São impostos ao destinatário por um autor, às vezes por um editor, e são explicitados por indicações paratextuais: ‘ensaio’, ‘meditação’, ‘aforismo’ etc”. O gênero é imposto pelos autores de maneira unilateral.
- Gêneros rotineiros: “São os gêneros privilegiados pelos analistas do discurso: revistas, entrevistas, charlatanice (conversa fiada) de camelô, formulários administrativos, regulamentos etc. Os papéis interpretados pelos participantes são fixados (estabelecidos) a priori e, em geral, permanecem estáveis durante o processo de comunicação”. São privilegiados pelos analistas do discurso e pressupõem que, geralmente, os papéis interpretados pelos participantes são fixados a priori e mantém-se estáveis ao longo do processo de comunicação. Os gêneros que emergem do guarda-chuva rotineiro são produtos de “práticas sociais estabelecidas através da interação de múltiplas coações de diversas ordens”.
- Conversacionais: “As interações orais ‘ordinárias’, que não são reguladas por instituições, que não fixam os papéis aos parceiros ou os scripts estabelecidos para o desenrolar da atividade, sua organização textual e seu conteúdo habitualmente vago e seu quadro evoluído sem cessar durante a interação”. Se o gênero rotineiro é estrutura a partir de coerções globais, ou seja, que compreendem o conjunto da atividade e, ao mesmo tempo, coerções verticais, pois são impostas pelo sistema pré-existente de lugares sociais, nos gêneros conversacionais as coações são horizontais, na medida em que os participantes estão a todo instante negociando seus papéis. Especificamente para a categoria conversacional, Maingueneau recua em atribuir a possibilidade de falar sobre gêneros (pois pressupõem atividades tipificadas), apesar de compreender que é possível categorizar as conversações por tipos.
No interior de cada uma dessas modalidades, principalmente em relação ao tipo autoral e rotineiro, o gênero aparece como condição e produto do exercício coerente da prática discursiva:
Os gêneros do discurso não podem ser considerados como formas que se encontram à disposição do locutor a fim de que este molde seu enunciado nessas formas. Trata-se, na realidade, de atividades sociais que, por isso mesmo, são submetidas a um critério de êxito.[10]
Ou seja, um ato de linguagem como uma promessa pressupõe a realização da promessa e o interesse do co-enunciador no que foi prometido. Os gêneros do discurso também estão submetidos a uma série condições de êxito socialmente construídas. Retornando aos elementos do gênero discursivo que apontei no início deste artigo, Maingueneau descreve cinco que traduzem condições de êxito de uma prática verbal regida por um gênero[11]:
- Uma finalidade reconhecida: “Todo gênero de discurso visa a um certo tipo de modificação da situação da qual participa”, ou seja, implicitamente, a seguinte questão fica posta: estamos aqui para fazer ou falar o quê?;
- O estatuto de parceiros legítimos: “Que papel devem assumir o enunciador e o co-enunciador”? Aquele que fala e aquele a quem a fala é dirigida é determinado nos diferentes gêneros do discurso.
- O lugar e o momento legítimos: “Todo gênero de discurso implica um certo lugar e um certo momento. Não se trata de coerções ‘externas’, mas de algo constitutivo”. A praça pública é um lugar ilegítimo para uma missa, por exemplo. Ao mesmo tempo, sob o signo da transgressão (e não da repetição) uma missa em praça pública pode significar a abertura da igreja ao povo. Em relação à temporalidade, a periodicidade, duração, continuidade e duração de validade são consideradas para delimitar o gênero.
- Um suporte material: “Um texto pode passar somente por ondas sonoras (oralidade), ter suas ondas tratadas e depois restituídas por um decodificador (rádio, telefone etc.), ser manuscrito, impresso em um único exemplar (impressora individual), figurar na memória de um computador etc”. A modificação do suporte material reorganiza o próprio gênero do discurso. É modificado radicalmente, por exemplo: o debate político na televisão gera falas que deverão ser ouvidas por um amplo público, já o mesmo debate realizado numa sala fechada em que somente os presentes seriam plateia já condiciona outras formas de debate de acordo com o público real presente.
- Uma organização textual: “Todo gênero de discurso está associado a uma certa organização textual que cabe à linguística textual estudar”. Ou seja, o domínio de um gênero do discurso equivale ao domínio dos modos de encadeamento, de continuidade, dos elementos constituintes seja no nível da frase ou da prática verbal como um todo.
A partir do exposto acima, é possível chegar à conclusão de que o gênero do discurso é entendido sob três grandes metáforas: a do contrato, pois pressupõe uma cooperação entre os enunciadores e o reconhecimento das normas que o regem; do papel, pois pressupõe que cada participante deve ser entendido dentro de suas condições determinadas (e não de todas as possíveis); e a do jogo, que representa as duas primeiras metáforas colocadas em prática: o contrato colocado em prática pelos papéis interpretados.
Considerações finais
Desta forma, os gêneros do discurso exigem aceitação de suas regras àqueles que participam, entretanto, tal aceitação não acontece num nível instrumental, não precisa “ser objeto de um acordo explícito: ‘É justamente porque o contrato de comunicação é fundador do ato de linguagem que ele inclui sua própria validação'”[12]. Este acordo é firmado entre sujeitos que “interpretam” papéis, ou seja, suas práticas verbais não são aleatórias e nem dependentes de todas as determinações possíveis: os papéis são particulares. A prática verbal num gênero discursivo exige tal tipo de interpretação para que seja minimamente coerente.
Por fim, na união entre contrato e papel, o jogo aparece, sendo que, no jogo, as regras estão em prática e aqueles que não a aceitarem, “saem do jogo”. Ao contrário das regras de um jogo literal, as regras do gênero discursivo não são rígidas, ou seja, os gêneros também podem se transformar. Entretanto, independentemente das regras em jogo, um gênero está compromissado com a eficiência prática que ele entrega enquanto possibilidade aos seus participantes, evitando gasto cognitivo em demasia e assegurando a coerência da comunicação.
Referências
[1] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 59.
[2] Idem.
[3] MAINGUENEAU, Dominique. Tendências em análise do discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 35.
[4] MAINGUENEAU, Dominique. Gêneros do discurso e web: existem os gêneros web?. Revista da ABRALIN. Acesso em 17 jun 2022. Disponível em <<https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1274>>.
[5] Idem. Negritos meus.
[6] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 61-62.
[7] MAINGUENEAU, Dominique. Gêneros do discurso e web: existem os gêneros web?…
[8] MAINGUENEAU, Dominique. Tendências em análise do discurso… p. 36.
[9] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 63-64.
[10] MAINGUENEAU, Dominique. Gêneros do discurso e web: existem os gêneros web?…
[11] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 66-68.
[12] MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação… p. 69.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.